Um mundo mais feminista, por Débora Diniz

Para antropóloga, pandemia impactou como nos relacionamos, quem somos e como nos (des) humanizamos

” Tenho pensando se a reviravolta da pandemia pode nos levar a um mundo mais feminista. Há quem me estranhe como uma otimista fora de hora por enunciar a pergunta: esses estão certos de que o trajeto do vírus é outro, pois amplificará vozes autoritárias e populistas no mundo. Há outros que, como eu, duvidam de análises pretéritas da realidade.

A verdade é que não sabemos; estamos como em um estágio intermediário de um rito de passagem — não mais como antes, mas ainda distantes do que surgirá depois dessas semanas de estranha suspensão do que conhecíamos como normalidade da vida.

Não quero me portar como os homens sabidos que sobem aos palanques e fazem projeções sobre a política ou o mercado financeiro, como se o acaso pudesse ser controlado. Acertam algumas vezes, mas erram muito. Há sempre o risco de um “cisne negro” atravessar a realidade que só conhecia “cisnes brancos”, para seguir a alegoria de Nassim Taleb sobre a fragilidade das análises sobre o funcionamento do mercado financeiro.

A pandemia de Covid-19 é como um “cisne negro” em um universo em que se conheciam apenas “cisnes brancos”: não estava prevista e poucos são os recursos prévios que dispomos para controlar os efeitos da crise econômica e de saúde pública na vida das pessoas comuns.

De onde surge minha hipótese de que a pandemia pode fazer circular valores feministas silenciados pelo patriarcado? Do desamparo da sobrevivência. Vivemos o desamparo pela desorganização das normas sociais, uma experiência afetiva que pode ser produtiva sobre formas alternativas de sobrevivência. “Estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que me despossui dos predicados que me identificam”, diz Vladimir Safatle.

Os meus predicados são como testamentos e aquisições — se sou mulher em uma cultura machista, sou mulher branca em uma sociedade colonial racista; se sou latina imigrante nos Estados Unidos, onde morrem mais latinos que brancos de Covid-19, sou uma latina de cor discreta e com trabalhos protegidos porque pouco essenciais à sobrevivência da humanidade. Poderia ampliar a lista de meus predicados, desde os mais significativos para uma vida justa em que os corpos são a matéria das desigualdades, até os mais insignificantes, talvez, descritos como preferências pessoais.

Os nossos predicados são como nossas identificações, ou seja, marcadores sociais que nos antecedem e nos acompanham nas relações sociais. A pandemia de Covid-19 escancarou como os predicados embrenhados nas desigualdades sociais, como raça, gênero, idade ou classe, determinaram nossa maior ou menor capacidade de proteção ao adoecimento ou à morte.” 

Em fevereiro deste ano, Debora Diniz recebeu o prêmio Dan David Prize por sua atuação na defesa da igualdade de gênero.

Professora da Universidade de Brasília, fundadora da organização Anis Instituto de Bioética e pesquisadora da Brown University, dos Estados Unidos, Debora há anos está na linha de frente do debate sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Ela defende a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

Debora também comemorou o fato de ser a segunda mulher latina laureada com o prêmio, que existe desde 2002. 

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