O adeus a Nélida Piñon

Considerada uma das mais importantes escritoras do Brasil, morreu aos 85 anos em Lisboa neste sábado (17)

Primeira mulhere a presidir a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 100 anos, ocuoava a cadeira de número 30 desde julho de 1989. Nélida Piñon nasceu no Rio de Janeiro em 1937 e se formou em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Com mais de 20 livros publicados, suas obras foram traduzidas em mais de 30 países. Entre eles, romances, contos, ensaios, discursos, crônicas e memórias.

Vencedora de dezenas de prêmios, nacionais e internacionais, colaborou em diversos jornais e revistas literárias e foi correspondente no Brasil da revista Mundo Nuevo, de Paris.

Defensora da civilidade, da gentileza, dos bons caprichos humanos, Nélida Piñon, uma das mais importantes escritoras do Brasil, cujo encanto advinha do seu amor e respeito por toda manifestação da arte e da vida, em entrevista exclusiva, falou sobre a sua trajetória, sonhos e conquistas… Confira:

A palavra é seu Olimpo

Carioca de origem galega, primeira mulher e autora de Língua Portuguesa a receber o prêmio internacional mais importante da América Latina (Juan Rulfo), também a primeira a presidir a Academia Brasileira de Letras, eleita Embaixadora Ibero-Americana da Cultura, na Espanha. O título é um reconhecimento ao talento e à trajetória desta escritora de duas culturas, que desde pequenina se deixou invadir pelos fluxos da imaginação e da memória.

“Sempre fui muito atraída por aquilo que a imaginação me dava. Eu, mesmo não sabendo o que era imaginação, me deixava levar pela voragem das ideias, dos pensamentos, das histórias, das narrativas que eu adorava”, compartilha.

Com a mesma naturalidade que narra os temas que marcaram sua vida, Nélida conta que sua paixão pela literatura foi despertada por seu fascínio pela vida dos personagens dos livros que lia desde a mais tenra idade. A pequena leitora aspirava ter a vida dos personagens, queria viver suas aventuras. Desse desejo nasceu a vontade de contar histórias.

“Eu fui municiada pela minha família a ler muito cedo. Meus presentes eram sempre o Tico-Tico e os Almanaques do fim do ano. Eu adorava aquelas figuras lendárias que se misturavam com os personagens dos livros e me dava conta que essas figuras eram fascinantes porque viviam uma vida diferente da minha, e eu aspirava ter a vida deles. Portanto, isso me levou a desejar mais do que nunca escrever”, ressalta.

Assim, por volta dos oito ou nove anos, Nélida começou a contar suas histórias. Ela recorda que, nessa época, escrevia e ilustrava suas criações em folhas soltas, que depois costurava, formando pequenos livretos, e vendia ao seu pai. Com humor, diz que já deveria ter noção de direitos autorais.

“Eu combinava o prazer por ele ver o que eu estava produzindo com os direitos autorais da minha obra. Essas coisas foram consolidando minha inspiração pela literatura, por contar histórias, narrar, pensar além do que eu podia. Imaginar que havia tantos mundos a minha disposição desde que eu desejasse ir ao alcance deles. Acho que esse foi o grande princípio da minha narrativa, do meu desejo de ser escritora”, diz.

Porém, aos 12 anos, quando já se aventurava no mundo dos contos, sofreu, no seu dizer, o grande choque estético da sua vida. Em viagem à Bahia, conheceu a zona de Salvador acompanhada de seu primo Serafim, por insistência da própria autora. Ao retornar ao Rio de Janeiro, fascinada pela diversidade de estilos de vida daquele lugar começou a escrever um conto sobre a paixão de um rapaz por uma prostituta. No entanto, durante a narrativa, Nélida se assombra com a frase que escreve: ‘Ele a segue às pressas, correndo, subindo a ladeira íngreme’.

“O que me assustou não foi a redundância da frase, e sim, a sua banalidade. Eu não queria ser o que teria que ser para ser banal, para ser convencional, para consagrar as frases que não necessitam de consagração, mas que merecem consagração quando elas passam pelo filtro da arte. Claro que minhas palavras à época não foram estas, mas o sentimento foi este!”, assegura.

O choque fez com que abandonasse as histórias por alguns anos para se dedicar à exploração de suas emoções e reflexões diante da arte e da vida. Ela recorda que ficava sentada diante de uma maquininha de escrever, presente do seu pai, à espera da música pedida tocar no rádio Roquette Pinto, para deixar as emoções fluírem no papel.

“Tudo o que eu pensasse, o que a imaginação ditasse, o coração, o sentimento, o mistério da arte, eu escrevia”.

Uma rotina que adotou até o lançamento do seu primeiro romance, em 1961, o Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo. Desde então, foram vários romances, contos, ensaios, crônicas, memórias e um infanto-juvenil.

A influência na sua obra, segundo Nélida, é de um conjunto da vida que vive. Advém do mundo, de todos os autores dos livros que leu, das viagens à Espanha, de toda expressão da arte, das pessoas nas esquinas.

“Eu tenho a convicção de que é impossível destacar influências. Uma pessoa aberta para o mundo, como eu sempre fui, desde pequena, que viajou, que leu muito, que viu teatro, cinema, balé, ópera. Com uma vida intensa e profunda, não pode se cingir a uma única influência. Acho que o mundo inteiro me influenciou, todos os livros de literatura, de formação, me deram um arcabouço muito sólido. Eu sou devedora a todos. Tudo me motivou a fazer o esforço de interpretar o mundo. Eu acredito em formação, esse negócio de improvisação não resiste, tem um arfar curto”, considera.

Hoje, a autora que é consagrada por sua obra composta por diversos livros, traduzidos em vários países, entre os quais Vozes do deserto, A casa da paixão, A república dos sonhos, Coração andarilho, Livro das Horas, afirma que todos lhe são caros. Cada qual teve uma função na sua vida narrativa.

“Cada um adicionou um dado novo. Significou um desvio estético, uma audácia estética. Realisticamente eu vejo que todos eles constituem um acréscimo na minha habilidade de narrar. Cresci com cada livro”, avalia.

Ocupante da cadeira de número 30 da Academia Brasileira de Letras, vê na imortalidade o conceito da distinção, da perpetuação da obra. “Entrei na Academia não pela glória, mas pela memória”, reforça.

No ano em que a casa comemorou seu centenário, foi eleita presidente, sendo a primeira mulher em cem anos a ocupar tal cargo. A escolha, de acordo com Nélida, foi resultado de seu trabalho como interina na gestão anterior.

“Naquele ano, o presidente Antônio Houaiss passou por grave problema de saúde e teve que se afastar, e eu, como secretária-geral da casa, assumi como presidente interina, passando a decidir e definir tudo. Coisas sérias. Os notáveis foram vendo que eu não era só a intelectual, a autora de livros, mas uma mulher de ação e de alta responsabilidade. Eles gostaram tanto que, no ano seguinte, no ano do centenário, fui eleita presidente. Isso foi maravilhoso, porque não só fui eleita como me deram delegação total. Acho isso extraordinário. Foi uma confiança absoluta e um ano bem sucedido”, destaca.

Precursora e feminista, acredita que o papel da mulher na literatura melhorou muito, principalmente no Brasil, mas não crê que exista uma real qualidade. Para ela, ainda suscita desconfiança ou, pelo menos, certa indiferença.

“Um desejo de não ler muito para não gostar. Tanto que, nas mesas redondas, é sempre na base das cotas: três homens e uma mulher, sendo que, às vezes, nenhuma aparece. Acho que, nesse sentido, nós somos minoritárias, ainda não somos plenamente legitimadas”, analisa.

Em contrapartida, acredita que a ascensão feminina ao poder demonstra que o brasileiro está começando a entender muito mais do que antes o esforço da mulher e sua capacidade. “Eu percebo que, cada vez mais, cresce a crença de que a mulher é muito responsável com as coisas públicas, como ela é com a maternidade, com o lar e com a casa”, analisa.

Reconhecida dentro e fora do Brasil, Nélida integra o grupo de mulheres singulares que, com sua trajetória de sucesso, abre espaço para as futuras gerações. Vanguardista e revolucionária, dona de uma expressão tranquila e serena, em contraste com os olhos inquietos e brejeiros, que revelam sua alma aventurosa, tem na rotina seu ponto de equilíbrio.

“Eu adoro o cotidiano, a casa, os objetos, adoro arrumar a geladeira, tenho três. Adoro comida, sou exagerada, minha mãe perguntava a quem você saiu minha filha? ‘A seu pai, minha mãe’, respondia. Meu avô Daniel dizia: se não sobrou faltou. Sei tudo da casa. Isso é que me sustenta e me traz para a realidade. Caso contrário, eu ficaria voando. Tudo da casa faz parte do meu crescimento humano, faz com que eu saiba onde estou. A minha rotina é estar pronta para viver. Sou uma aventureira na mesa, na cama, na estrada”, destaca.

Amante dos clássicos westerns de John Ford, do qual diz conhecer todos os movimentos de câmera. Também é amante da música, da ópera. Seu temperamento é ameno e tranquilo, e, segundo ela, resulta do gostar de si, do conhecimento cada vez maior da sua humanidade e da do outro. Tem pavor da violência, da barbárie. “Sou defensora da civilidade, da gentileza, dos bons caprichos humanos”.

Em 2012, a menina que sempre quis ser uma aventureira, e que mergulhou na magia das palavras com extrema sensibilidade e simplicidade, revelou seus medos, suas aspirações, suas transgressões, seus amores e suas amizades. No Livro das Horas, suas memórias, Nélida revelou a menina que foi e a mulher que se tornou. Narrou de forma quase lúdica momentos da sua infância, da sua amizade com Clarice Lispector e do seu amor pelo cãozinho Gravetinho, compartilhou histórias da sua vida e das vidas próximas que abarcou. O texto, com uma linguagem simples e despojada, revela sentimentos, reflexões.

“É a consolidação da emoção humana. É o coração de um ser. É o meu coração dentro do texto e, sendo o meu, é o de todos, porque não acredito que um escritor tenha um coração privado. Ele é público, coletivo e como tal se multiplica em milhares”, defende.

O livro, segundo sua autora, é uma grande reflexão sobre a traição, o amor, a morte, as perdas, sobre quem somos, como é a casa, o cotidiano. “É um livro que não se envergonha, não tem vergonhas, fala com extrema sinceridade daquilo que as pessoas em geral tem pudor de falar. Convoco-os a leitura”, convida Nélida.

Obras de Nélida Piñon

  • Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (1961)
  • Madeira Feita Cruz (1963)
  • Tempos das Frutas: contos (1966)
  • Fundador (1969)
  • A Casa da Paixão (1972)
  • Tebas do Meu Coração (1974)
  • A Força do Destino (1977)
  • O Calor das Coisas (1980)
  • Sala das Armas (1983)
  • A República dos Sonhos (1984)
  • Canção de Caetana (1987)
  • O Pão de Cada Dia (1994)
  • Até Amanhã, Outra Vez (1999)
  • A Roda do Vento (1998)
  • Vozes do Deserto (2004)
  • Aprendiz de Homero; ensaio (2008)
  • Coração andarilho: memória (2009)
  • Livro das Horas: memória (2012)
  • A Camisa do Marido (2014)
  • Filhos da América (2016)
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