Morre aos 106 anos a escritora Cleonice Berardinelli

Ela era professora, escritora e a integrante atual mais longeva da Academia Brasileira de Letras (ABL)

Cleonice Berardinelli morreu nesta terça-feira, 31, no Rio de Janeiro, aos 106 anos, no Hospital Samaritano, em Botafogo, Zona Sul carioca, vítima de insuficiência respiratória. Ela era professora, escritora e a integrante atual mais longeva da Academia Brasileira de Letras (ABL).

A escritora nasceu no Rio de Janeiro em 28 de agosto de 1916. Desde a graduação, em 1938, as terras de Camões passaram a pautar o magistério e os estudos de Brardinelli. Dona Cleo, como preferia ser chamada, era doutora em letras clássicas e vernáculas pela Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, atual UFRJ e livre-docente de literatura portuguesa na mesma instituição. Também foi professora emérita da PUC Rio e professora convidada pelas universidades da Califórnia, nos Estados Unidos, e de Lisboa, em Portugal. Ela ocupava a 8ª cadeira da ABL, tendo sido empossada em 16 de dezembro de 2009, aos 93 anos de idade, na sucessão de Antônio Olinto.

Em 2009, eu tive o privilégio de entrevistá-la para a revista Persona Mulher. Na ocasião, recentemente eleita para a ABL, dona Cleo contou um pouco da sua trajetória de vida, creditando a longevidade ao amor e apaizão pela carreira. “Se cheguei a esta idade é porque sempre fiz aquilo de que gosto e sempre com grande paixão, com grande entusiasmo. Acho que temos que assumir qualquer idade, tirando dela tudo que ela tem de bom”. Confira:

De fardão na melhor idade

Escritora lusitana, aos 93 anos de idade, entra para a Academia Brasileira de Letras

por Marcia Denise Silveira

Cleonice Berardinelli, a professora Cléo, como é chamada carinhosamente por seus alunos, no auge dos seus 93 anos, nos recebe em seu apartamento em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro e com a mesma vivacidade dos seus 22 anos, idade com a qual começou sua carreira de mais de 70 anos no magistério, narra com extrema coerência sua história. Considerada a maior especialista em literatura portuguesa no Brasil, foi eleita em 16 de dezembro de 2009, imortal da Academia Brasileira de Letras.  Com modéstia, diz que nunca namorou a Academia, não por desdouro, mas sim por falta de tempo. “Eu não cobicei este posto, mas fico feliz em recebê-lo”, disse.

A pequena grande lusitanista brasileira nasceu no Rio de Janeiro em 1916, e se formou em 1938 na USP, na terceira turma do curso de Letras Neolatinas. Numa época em que a literatura para as moças era policiada e a formação profissional não era uma exigência, pelo contrário, nem era muito bem-vista, dona Cléo conta que a família, tanto o pai quanto a mãe, sempre incentivou os filhos a terem uma profissão e serem independentes. “Éramos uma família pequena de cinco pessoas: papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu, mas muito unida. Sempre trocávamos ideias e torcíamos pelo sucesso um do outro”.

O interesse pela Literatura Portuguesa, segundo ela, apareceu na sua vida por intermédio de um grande mestre, o professor Fidelino de Figueiredo. Com ele conheceu os grandes nomes da literatura lusitana. “É claro que eu já gostava da Literatura Portuguesa, mas a conhecia superficialmente. As aulas com o professor Fidelino despertaram em mim o interesse por esta língua tão rica. Ele era um homem muito viajado, além de ter sido perseguido pelo governo Salazar, o que para nós alunos lhe dava uma áurea de herói”, recorda.

De acordo com ela, sua trindade preferida da Literatura Portuguesa são Gil Vicente, Camões e Fernando Pessoa, mas isso não significa uma ordem de preferência, para ela, os três são os pontos mais altos da literatura, não só portuguesa como de todas as línguas cuja literatura estudou. “Em minhas aulas, de uns anos para cá, ative-me mais ao passado. Começando na Idade Média, até, no máximo, século XIX, parando em Camões. Contudo, uma exceção que costumo me permitir é falar de Fernando Pessoa, porque realmente aulas sobre Pessoa gosto de dar sempre”. Quanto a Gil Vicente, diz ser este o ponto mais alto do seu interesse. “Amante do teatro, fui atraída pela inovação que este autor trouxe para o teatro de Portugal. Ele inseriu o texto dramático, no sentido teatral da palavra”.  

O começo, conta, não foi fácil, já que todos os seus contatos estavam em São Paulo e no Rio e assim como a personagem da ópera La Traviata, que se viu perdida neste populoso deserto que se chama Paris, no início de 1939, ela estava perdida neste populoso deserto chamado Rio de Janeiro”. Vencidas as primeiras dificuldades, começou a dar aulas particulares, depois começou a lecionar, no antigo secundário, ministrando aulas de Português, Francês, Literatura Francesa e Latim, por sete anos. Em 1944, começou sua trajetória acadêmica.

Hoje, dona Cleo é uma referência nos estudos da Literatura Portuguesa, tendo publicado diversos livros sobre a literatura e os escritores portugueses.  Há mais de 62 anos estimula em seus alunos da UFRJ e da PUC/RJ, que já somam o expressivo número de dois mil, a paixão pelas letras. Sua dedicação não se mede apenas pelo tempo de trabalho. Além de lecionar e orientar teses de pós-graduação, ela é considerada a maior lusitanista – ou especialista em literatura portuguesa – do Brasil, com fama internacional e título emérito na UFRJ.

Sua dedicação mereceu o reconhecimento de nomes como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Entre as muitas situações inusitadas de sua vida, disse que conheceu o poeta Manoel Bandeira, ao encenar uma peça teatral, na qual representava um anjo, tendo o poeta na platéia. No dia seguinte, um professor lhe recomendou que lesse a coluna de Bandeira no jornal Correio da Manhã. “Ele escreveu que ao ouvir a voz do “anjo” sentiu lágrimas nos olhos, fez um elogio lindo e, assim, ficamos amigos”, recorda. De Drummond recebeu a dedicatória no livro Fazendeiro do ar, de 1954: “À verdadeira fazendeira.”

Não foi só na vida acadêmica que dona Cleo semeou. Em 1949, ela casou e quis muito ter tido filhos, mas apesar de não tê-los tem cinco netos, 11 bisnetos e dois trinetos.  “Meu marido que tinha duas filhas, portanto, eu tinha duas enteadas, costumava dizer: ‘essa minha mulher faz milagres, nunca teve filhos e tem netos e bisnetos’. Quando ele morreu só tínhamos bisnetos, agora tenho trinetos”.   

Atualmente, a professora Cleo, dá aulas no curso de pós-graduação na UFRJ e na PUC/RJ. A dedicação aos estudos literários portugueses abriu novos caminhos à leitura das produções lusitanas e lhe garantiu homenagens e reconhecimento de instituições como a Academia das Ciências de Lisboa e o Instituto Camões.

Este ano  foi escolhida para ocupar a cadeira nº 8 da Academia Brasileira de Letras (ABL).  Logo no primeiro escrutínio, a candidata eleita recebeu 30 votos. Seu concorrente, o jornalista e ex-ministro Ronaldo Costa Couto, recebeu 9. Questionada sobre a indicação para a ABL, dona Cleo, modestamente disse que a indicação é uma coisa agradável, mas que nunca cobiçou nenhuma Academia. “Não há nisso nenhum desdouro, mas é que minha vida é tão ocupada que eu não tenho tempo para isso, mas fico feliz com a indicação e se a nomeação vier será muito bem-vinda”.

Para os que se admiram da sua vitalidade e longevidade deixa uma mensagem: “Se cheguei a essa idade foi porque sempre fiz aquilo de que gosto e sempre com grande paixão, com grande entusiasmo. Acho que temos que assumir qualquer idade, tirando dela tudo que ela tem de bom”, ensina.

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