O Prêmio Camões de Literatura, um dos principais do mundo, ao longo dos seus 33 anos nunca havia elegido uma mulher negra vencedora. Paulina Chiziane, de 66 anos, é a primeira
A escolha da escritora moçambicana Paulina Chiziane foi unanimidade entre o jurí. Composto por intelectuais de vários países, os jurados destacaram a sua vasta produção e receção crítica, o reconhecimento acadêmico e institucional da sua obra, assim como a importância que dedica nos seus livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.
Em seu discurso, em uma crítica a termos racistas do português, Chiziane pediu a “descolonização” da língua portuguesa.
“É na língua portuguesa que eu expresso os meus sentimentos e me afirmo diante do mundo. Mas eu gostaria que a língua fosse de todos (…) A língua portuguesa, para ser definitivamente nossa, precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização”, disse a escritora.
Como exemplo, a escritora citou a palavra “matriarcado”, que tem como significado no dicionário “costume tribal africano”, em contrapartida, “patriarcado” significa “tradição heróica dos patriarcas”.
Ela também destacou a palavra “catinga”, que tem como significado “cheiro nauseabundo característico da raça negra”.
“Somos usurpados, os africanos, por estes e por aqueles, porque os rastros da nossa história foram apagados através dos tempos. Estamos à deriva, não sabemos bem quem somos e, por isso, somos facilmente manipulados pelo mundo. O autoconhecimento tem de ser a chave para o sucesso de quem quer que seja”, afirmou a escritor
Paulina Chiziane é um dos principais nomes da literatura africana, com livros como “Niketche: Uma História de Poligamia”, que fala sobre poligamia e tabus da sociedade moçambicana sobre o tema. Em 1990, se tornou a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique ao lançar “Balada de Amor ao Vento”.
Por sua contribuição à literatura de língua portuguesa, em outubro de 2021, ganhou o prêmio Camões, maior premiação de países que falam a língua portuguesa, mas só recebeu oficialmente este ano a láurea. O atraso se deu porque o ex-presidente Bolsonaro se recusou a assinar o diploma de vitória de Chico Buarque, vencedor de 2019, e acabou formando uma fila na premiação até o atual presidente Lula assinar neste ano e o cantor receber seu prêmio.
Mas até se tornar um grande nome da literatura, Paulina sofreu muito preconceito durante sua vida. Falante da língua chope e ronga, só aprendeu o português na escola, onde foi alvo de racismo.
Filha de família religiosa cristã, logo casou-se, teve dois filhos. Conheceu “as primeiras amarguras’’ e começou a questionar não apenas o seu, mas o lugar reservado no mundo para as mulheres.
Leitora assídua da bíblia, a escritora diz ter descoberto em suas pesquisas um Jesus “revolucionário, defensor dos direitos humanos e feminista”. Para ela, seus escritos são tão sagrados quanto a bíblia. “Precisamos desconstruir esse mito que sacraliza as ideias de uns em detrimento das de outros; a minha inspiração também é sagrada”, afirma.Paulina Chiziane, que diz ser vinda de “de lugar nenhum”, que “aprendeu a escrever na areia do chão” e usou “o primeiro par de sapatos com 10 anos”, mostrou-se hoje “muito feliz” por receber o Prêmio Camões, “um prêmio tão importante, exatamente no Dia Mundial da Língua Portuguesa”.
“Para quem vem do chão, estar aqui diante do Governo português, do Governo brasileiro, do corpo diplomático e de várias personalidades é algo que me comove profundamente. Caminhei sem saber para onde ia, mas cheguei a algum lugar, que é este prêmio”, disse.
Biografia
Paulina Chiziane nasceu em Manzacaze, vila rural moçambicana, mas cresceu nos subúrbios de Maputo, capital do país. De família protestante onde se falavam as línguas Chope e Ronga, aprendeu a língua portuguesa na escola de uma missão católica.
Sua juventude foi marcada pela atuação na Frelimo, a Frente de Libertação de Moçambique, responsável pela luta em prol da independência do país. Após a independência, teve início uma guerra civil. Paulina Chiziane, então, tornou-se voluntária na Cruz Vermelha durante o conflito, e sua atuação política não cessou após o fim da guerra, em 1992. A autora passou a fazer parte do Núcleo das Associações Femininas da Zambézia (Nafeza), organização não governamental criada em 1997, na cidade de Quelimane.
Em 1984, iniciou sua atividade literária, com contos publicados na imprensa moçambicana. Com seu primeiro livro “Balada de amor ao vento”, editoado em 1990, tornou-se a primeira mulher moçambicana a publicar um romance. Mas o sucesso como escritora chegaria em 2002, com a publicação do livro Niketche: uma história de poligamia. Por essa obra, ela ganhou o Prêmio José Craveirinha, da Associação dos Escritores Moçambicanos.
Ao todo a escritora tem nove livros publicados.
Balada de amor ao vento (romance). Paulina Chiziane. 1ª ed., Maputo: edição do autor, 1990; Maputo: Ndjira 2003.
Ventos do apocalipse (romance). Paulina Chiziane. Maputo: edição do autor, 1993; 1ª ed., Maputo: Ndjira, 2006.
O sétimo juramento (romance). Paulina Chiziane. 1ª ed., Maputo: 2000 ; 4ª ed., Maputo: Ndjira, 2009.
Niketche: uma história de poligamia (romance). Paulina Chiziane. 1ª ed., Maputo:2002; 6ª ed., Maputo: Ndjira, 2009.
O alegre canto da perdiz (romance). Paulina Chiziane. Maputo: Ndjira, 2008.
As andorinhas. (contos). Paulina Chiziane. 1ª ed., Maputo: Indico Editores, 2009; Maputo: Matiko e Arte, 2017.
Na mão de Deus. Paulina Chiziane. Maputo: Matiko & Arte, LDA, 2016.
Ocúpali: integrando as mulheres no desenvolvimento. Paulina Chiziane. Maputo: CIEDIMA, 2016.
O canto dos escravos. Paulina Chiziane. Maputo: Matiko e Arte, 2017.